sábado, 25 de fevereiro de 2017

Vendo Lagos como um turista

Com um fim de semana pela frente em que posso dispor do tempo a meu bel-prazer, hoje de manhã abalei a caminho da Biblioteca Municipal. Talvez se fosse em qualquer outro fim de semana teria ido de carro para me despachar, mas hoje não havia pressas e o tempo também merece ser saboreado sem parcimónia, como aliás sinto tanta falta nestes dias de constante correria e atividade.

Assim, lá coloquei os auriculares nos ouvidos, liguei o rádio no telemóvel e pus-me a caminho, desfrutando do passeio com uma temperatura agradavelmente amena e que explica tão bem porque tantos ingleses, nórdicos, franceses e outros que tais escolhem este maravilhoso pedaço no sul da Europa para viver.

Chegado à Biblioteca, em poucos minutos tinha na mão o livro que fui requisitar. Ao regressar, em vez de fazer apenas o caminho de regresso, optei por tomar a direção da praia da Batata atravessando a muralha que circunda o centro histórico de Lagos por um arco debaixo do qual existe uma pequena capela construída no século XIV em honra de São Gonçalo que é o santo padroeiro da cidade de Lagos. Li a placa na parede que explicava precisamente isto, li outra placa ali perto que explicava a origem daquele arco e dei comigo olhando a estátua de Gil Eanes que estava apenas a cinquenta metros. Dirijo-me para o Forte Pau da Bandeira e olho o mal calmo e tranquilo, observo uma pequena lancha que vem rio abaixo seguindo na direção da Ponta da Piedade. Lá mais à frente uma embarcação de recreio atravessa a baía em direção ao Sotavento.

De repente apercebo-me de que estou a ver Lagos como um turista. Olho as construções, demoro-me a observar aquele mar imenso, bebo daquela luz difusa que abraça toda a cidade, sinto o calor suave emanado por um sol púdico que se escondia atrás de nuvens cúmplices da sua vergonha. Sinto-me hipnotizar por uma serenidade que apenas nos é transmitida pelas coisas belas e experimento mais uma vez, mas sempre como se fosse a primeira vez, a felicidade das coisas simples. 

Paixão pelo que se faz

Há uns dias atrás a minha filha de 14 anos, falando de Os Lusíadas, que está a dar na disciplina de Português, disse «Pai, já viste, Luís de Camões contou a História de Portugal tudo em poesia, em poemas de oito versos com dez sílabas cada um!»

Não consegui dissociar o tom de admiração com que a miúda disse aquilo da maneira calorosa, empenhada e apaixonada de dar aulas da Professora de Português deste ano, o que vem mostrar que no ensino, como em tantas outras coisas na vida, a entrega a algo nem sempre se traduz em resultados quantificáveis, mas não passa despercebida a quem a presencia.

É como comer comida em que o tempero fica aquém da pitada certa de sal. Está tudo lá, não falta nenhum ingrediente, mas falta algo para estar perfeito. É a diferença entre o bom e o excelente. É assim a paixão pelo que se faz. Como dizia Pessoa, por meio do seu heterónimo Ricardo Reis, «Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. // Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. // Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive.»   

Filosofia e Harrison Bergeron

Há algum tempo atrás comprei um pequeno livro sobre Filosofia intitulado Filosofia em Directo editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e escrito por Desidério Murcho. Por meio deste livro tomei conhecimento do site Crítica na Rede e subscrevi a sua newsletter.

Agora recebi um email com um link para o conto Harrison Bergeron de Kurt Vonnegut. Estas são as primeiras linhas:

«Era o ano 2081, e toda a gente era finalmente igual. Não apenas perante Deus e a lei. Igual em todos os aspectos. Ninguém era mais inteligente. Ninguém era mais bem parecido. Ninguém era mais forte ou rápido. Toda esta igualdade era devida às 211.ª, 212.ª e 213.ª emendas constitucionais, e à vigilância incessante dos agentes da Direcção-Geral Incapacitante dos Estados Unidos.»

Não deixem de ler aqui o resto deste conto escrito há 57 anos atrás.  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Não se encontra o que se procura


Título: Não se encontra o que se procura
Autor: Miguel Sousa Tavares
Editora: Clube do Autor
Nº de páginas: 266

SINOPSE

A escrita, a viagem, a memória, a vida fora da espuma dos dias, dentro da verdade, naquele momento de luz, onde as estações do ano convocam a sabedoria, a descoberta, o apelo do desconhecido, o instante em que tudo pode acontecer.

Nesta viagem fora do seu quarto, Miguel Sousa Tavares transporta-nos ao seu mundo mediterrâneo, ao sul de Portugal, à Croácia, a Roma, à Sicília, ao Brasil e aos lugares da História por onde passaram figuras gigantes. No regresso a casa, explica a razão da sua escrita. A sós, com as palavras, viaja para dentro de si para partilhar aquilo que só os grandes contadores de histórias sabem fazer, seguindo o lema: "Viajar é olhar".

Uma pergunta fica suspensa nas manhãs de Verão e nas noites de luar: Como é que se regressa quando não se sabe porque se partiu?


AS MINHAS OBSERVAÇÕES

Por vezes somos atraídos para um determinado livro sem sabermos explicar o porquê. Acho que foi isso que me aconteceu com este livro. Já tinha tido o livro na mão por diversas vezes e já tinha lido umas frases soltas cujo tom poético de Miguel Sousa Tavares (MST) até me agradou, mas nunca me tinha decidido pela compra do livro ou pela sua leitura. Talvez a promoção na Wook tenha sido decisiva para que este livro me chegasse às mãos definitivamente e penso que foi dinheiro bem gasto. 

No site da Wook este livro está catalogado como literatura de viagem, mas acho que esta classificação é um pouco redundante. Este livro tem algo de literatura de viagem, pois alguns capítulos consistem precisamente nas impressões do autor sobre sítios por onde viajou, mas é mais do que isso. Alguns capítulos consistem também num registo diarístico de MST em que este aborda assuntos vários. Em outros dois ou três capítulos MST fala sobre História. E ainda noutros fala sobre livros, a escrita e literatura.

Não se encontra o que se procura é um livro de registos, olhares, sentidos e prazeres em que as observações do autor demonstram como viajar é olhar e como não devemos deixar de fazer o que Saramago escreveu em Ensaio sobre a cegueira - se podes olhar vê, se podes ver repara. Neste exercício de olhar, ver e reparar, MST deixa-nos um livro leve com um certo tom poético que, tenho por certo, herdou da sua mãe, a poetisa Sophia de Mello Breyner.   

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Angústia de leitor

Frank Zappa disse "Tantos livros e tão pouco tempo". Pese embora não tenha a pontuação que a define como uma exclamação, penso que esta frase não pode ser outra coisa que não uma angústia exclamada pela boca de quem não consegue viver sem ler e gostaria de ter todo o tempo do mundo para ler os livros que quer ler. Não sei se era o caso de Zappa, mas é por certo o meu caso. E esta angústia tem momentos próprios, por vezes recorrentes, para se manifestar. Um desses momentos, e falo por mim, acontece quando termino um livro.

Quando termino a leitura de um livro, o que acontece entre vinte e trinta vezes por ano, fico perante a decisão sempre difícil de escolher qual o próximo livro que irei ler. E isto para mim não é algo isento de uma certa angústia, precisamente porque o tempo é escasso, sei que não viverei o tempo suficiente para ler tudo o que gostaria de ler, logo, como escolher bem qual deverá ser a próxima leitura?

Por um lado, não quero perder tempo com uma leitura que ao princípio pode parecer promissora mas que vem a revelar-se indigna do meu tempo - e para mim, toda a leitura que não me apraz é indigna do meu tempo! Por outro, não quero deixar de ler aqueles livros que, não sendo considerados grandes obras, são verdadeiras pérolas cuja leitura nos enche de deleite, mesmo que seja de uma maneira muito nossa.

Perante isto, como podem alguns não ver como é difícil a vida de leitor?

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O Cemitério dos Livros Esquecidos



Em 2006 chegou às minhas mãos A Sombra do Vento, um livro de um escritor até aí desconhecido para mim chamado Carloz Ruiz Zafón. Não me recordo como é que o livro me chegou às mãos. Se por oferta de algum amigo ou familiar, ou se terá sido mais um livro adquirido por mim, como outras centenas que ao longo dos anos têm vindo a engrossar a minha cada vez mais extensa lista de livros à espera de serem lidos.

Quando iniciei a leitura de A Sombra do Vento não o sabia, mas estava prestes a ter uma experiência que ainda hoje recordo com agrado. Ia a leitura mais ou menos pelas 300 páginas (o livro tem 500 e poucas) quando tivemos um casal amigo que nos visitou e nessa noite jantou connosco. Trocámos impressões sobre o que andávamos a ler e lembro-me de ter referido que o enredo estava um pouco monótono, o que fazia com que eu estivesse de certo modo a arrastar-me na leitura.

Nessa mesma noite, após os nossos amigos terem ido embora, tomei lugar no cadeirão do escritório, que na altura eu utilizava quando queria refugiar-me na leitura, e retomei a leitura de A Sombra do Vento, longe de imaginar que, na sua arte narrativa sem paralelo, Zafón tinha guardado o melhor para o fim. Recomecei a leitura e não tardou muito até que, como que por artes mágicas, aquele desenrolar modorrento da trama que tinha referido aos meus amigos fosse apenas uma recordação sem sentido perante um fôlego narrativo que inesperadamente ganhou forma.

Hoje, passados dez anos, recordo-me bem de três coisas: primeiro, era uma quinta-feira; segundo, a minha filha mais velha, na altura com quatro anos, levantou-se a meio da noite para ir à casa de banho, passou a dois metros de mim e eu não me apercebi de absolutamente nada, tal o modo como fui tomado pela história; por último, o sono fugiu de mim de tal maneira que, apesar de ainda me restarem cerca de umas cem páginas para terminar o livro, acabei por me ver forçado a decidir terminar a leitura para ir dormir, pela razão exclusiva de que no dia seguinte era dia de trabalho.

O dia seguinte foi vivido em modo de filme, como se as aventuras de  Daniel Sempere, Fermin Romero de Torres, Nuria Monfort, Bea e Julian Carax se desenrolassem em modo contínuo numa zona resguardada na parte de trás da minha mente, ao mesmo tempo que uma certa ansiedade ardia dentro de mim, como que em lume brando, fazendo-me desejar que o fim do dia chegasse rapidamente para voltar a me perder mais uma vez naquela história cujo fim desejava ardentemente conhecer.

Recordo-me bem da mescla de sensações com que peguei no livro nessa noite para retomar a leitura: por um lado, o prazer pelo qual ansiei durante todo o dia, por outro, um vislumbre antecipado da tristeza própria do final daqueles livros que nos marcam e cujas personagens permanecem connosco durante muito e muito tempo, e que já me espreitava no final daquelas páginas.

Já tarde, lá pelas duas ou três da manhã, ao terminar a leitura, sabia que tinha nas minhas mãos uma grande obra, ou não tivesse A Sombra do Vento vendido 15 milhões de exemplares e elevado o seu autor ao estatuto de autor espanhol mais vendido a seguir a Miguel de Cervantes. O que eu não sabia, mas não tardei a descobrir, era que uma Sra. insónia me aguardava alimentada pela adrenalina que me corria nas veias, o que sempre me acontece quando termino um livro cuja magia não me deixa indiferente. 

A Sombra do Vento tem como ponto central um lugar em Barcelona – o Cemitério dos Livros Esquecidos. Trata-se de uma biblioteca secreta que funciona como depósito para obras abandonadas pelo mundo, à espera que alguém as descubra. O jovem Daniel Sempere é levado a esta biblioteca pelo seu pai e é-lhe proposto que escolha um livro que ficará à sua guarda. O livro eleito é A Sombra do Vento, um romance de um escritor desconhecido chamado Julian Carax. Numa noite Daniel lê o livro de capa a capa e começa assim uma grande aventura que lhe deixará uma marca indelével.

No seguimento de A Sombra do Vento, Zafón escreveu ainda O Jogo do Anjo (2008), O Prisioneiro do Céu (2012) e O Labirinto dos Espíritos (2016). Estes quatro livros constituem uma tetralogia cuja história está interligada pelo Cemitério dos Livros Esquecidos.

Porque escrevo sobre isto agora? Porque Zafón encerra agora a tetralogia com O Labirinto dos Espíritos e, como tinha apenas umas poucas ideias vagas dos três primeiros livros, decidi relê-los pela ordem em que foram escritos. Reiniciei a leitura de A Sombra do Vento em 24 de novembro do ano passado e terminei ontem a leitura de O Labirinto dos Espíritos. Foram 72 dias em que me perdi pelas ruas de uma Barcelona gótica, intrigante e cheia de mistérios. Foram 2.313 páginas no conjunto dos quatro volumes no meio das quais vivi as aventuras de personagens que agora partem não sem deixarem algo em mim, ou não fosse esta precisamente uma característica das grandes obras.

Pese embora muitos sejam da opinião, inclusive o próprio autor, de que os quatro livros desta tetralogia podem ser lidos por qualquer ordem, como se cada livro fosse uma entrada diferente que leva à história principal, eu sou da opinião de que as peças encaixam melhor se os livros forem lidos pela ordem sequencial em que foram escritos, pese embora nem tudo seja totalmente claro de um livro para o outro. O Jogo do Anjo parece que destoa de A Sombra do Vento no que respeita ao centro do enredo – porque razão tanto destaque para David Martim? Em O Labirinto dos Espíritos percebe-se o porquê. Também, O Prisioneiro do Céu, apesar de ser uma boa história, apenas em O Labirinto dos Espíritos ganha fulgor à medida que Zafón nos permite ver tudo. Uma coisa para mim é certa: ler O Labirinto dos Espíritos sem ter lido nenhum dos outros livros anteriores é perder o prazer de observar como o escritor lança luz sobre uma série de pormenores e situações menos claros que são levantados nos primeiros livros e que apenas no último ficam devidamente claros para o leitor.

Para terminar, apenas uma nota sobre um pormenor delicioso, pelo menos para mim: A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu e O Labirinto dos Espíritos, para além dos títulos de cada um dos livros desta tetralogia, são também livros dentro do próprio enredo do Cemitério dos Livros Esquecidos.