Em 2006 chegou às minhas mãos A Sombra do Vento, um livro de um escritor até aí desconhecido para
mim chamado Carloz Ruiz Zafón. Não me recordo como é que o livro me chegou às
mãos. Se por oferta de algum amigo ou familiar, ou se terá sido mais um livro adquirido
por mim, como outras centenas que ao longo dos anos têm vindo a engrossar a
minha cada vez mais extensa lista de livros à espera de serem lidos.
Quando iniciei a leitura de A Sombra do Vento não o sabia, mas estava prestes a ter uma
experiência que ainda hoje recordo com agrado. Ia a leitura mais ou menos pelas
300 páginas (o livro tem 500 e poucas) quando tivemos um casal amigo que nos
visitou e nessa noite jantou connosco. Trocámos impressões sobre o que
andávamos a ler e lembro-me de ter referido que o enredo estava um pouco
monótono, o que fazia com que eu estivesse de certo modo a arrastar-me na
leitura.
Nessa mesma noite, após os nossos amigos terem ido embora,
tomei lugar no cadeirão do escritório, que na altura eu utilizava quando queria
refugiar-me na leitura, e retomei a leitura de A Sombra do Vento, longe de imaginar que, na sua arte narrativa sem
paralelo, Zafón tinha guardado o melhor para o fim. Recomecei a leitura e não
tardou muito até que, como que por artes mágicas, aquele desenrolar modorrento
da trama que tinha referido aos meus amigos fosse apenas uma recordação sem
sentido perante um fôlego narrativo que inesperadamente ganhou forma.
Hoje, passados dez anos, recordo-me bem de três coisas:
primeiro, era uma quinta-feira; segundo, a minha filha mais velha, na altura
com quatro anos, levantou-se a meio da noite para ir à casa de banho, passou a dois
metros de mim e eu não me apercebi de absolutamente nada, tal o modo como fui
tomado pela história; por último, o sono fugiu de mim de tal maneira que,
apesar de ainda me restarem cerca de umas cem páginas para terminar o livro,
acabei por me ver forçado a decidir terminar a leitura para ir dormir, pela
razão exclusiva de que no dia seguinte era dia de trabalho.
O dia seguinte foi vivido em modo de filme, como se as
aventuras de Daniel Sempere, Fermin
Romero de Torres, Nuria Monfort, Bea e Julian Carax se desenrolassem em modo
contínuo numa zona resguardada na parte de trás da minha mente, ao mesmo tempo
que uma certa ansiedade ardia dentro de mim, como que em lume brando,
fazendo-me desejar que o fim do dia chegasse rapidamente para voltar a me
perder mais uma vez naquela história cujo fim desejava ardentemente conhecer.
Recordo-me bem da mescla de sensações com que peguei no
livro nessa noite para retomar a leitura: por um lado, o prazer pelo qual
ansiei durante todo o dia, por outro, um vislumbre antecipado da tristeza
própria do final daqueles livros que nos marcam e cujas personagens permanecem
connosco durante muito e muito tempo, e que já me espreitava no final daquelas
páginas.
Já tarde, lá pelas duas ou três da manhã, ao terminar a
leitura, sabia que tinha nas minhas mãos uma grande obra, ou não tivesse A Sombra do Vento vendido 15 milhões de
exemplares e elevado o seu autor ao estatuto de autor espanhol mais vendido a
seguir a Miguel de Cervantes. O que eu não sabia, mas não tardei a descobrir,
era que uma Sra. insónia me aguardava alimentada pela adrenalina que me corria
nas veias, o que sempre me acontece quando termino um livro cuja magia não me
deixa indiferente.
A Sombra do Vento
tem como ponto central um lugar em Barcelona – o Cemitério dos Livros
Esquecidos. Trata-se de uma biblioteca secreta que funciona como depósito para
obras abandonadas pelo mundo, à espera que alguém as descubra. O jovem Daniel
Sempere é levado a esta biblioteca pelo seu pai e é-lhe proposto que escolha um
livro que ficará à sua guarda. O livro eleito é A Sombra do Vento, um romance de um escritor desconhecido chamado
Julian Carax. Numa noite Daniel lê o livro de capa a capa e começa assim uma
grande aventura que lhe deixará uma marca indelével.
No seguimento de A
Sombra do Vento, Zafón escreveu ainda O
Jogo do Anjo (2008), O Prisioneiro do
Céu (2012) e O Labirinto dos
Espíritos (2016). Estes quatro livros constituem uma tetralogia cuja
história está interligada pelo Cemitério dos Livros Esquecidos.
Porque escrevo sobre isto agora? Porque Zafón encerra agora
a tetralogia com O Labirinto dos
Espíritos e, como tinha apenas umas poucas ideias vagas dos três primeiros
livros, decidi relê-los pela ordem em que foram escritos. Reiniciei a leitura
de A Sombra do Vento em 24 de novembro
do ano passado e terminei ontem a leitura de O Labirinto dos Espíritos. Foram 72 dias em que me perdi pelas ruas
de uma Barcelona gótica, intrigante e cheia de mistérios. Foram 2.313 páginas
no conjunto dos quatro volumes no meio das quais vivi as aventuras de
personagens que agora partem não sem deixarem algo em mim, ou não fosse esta
precisamente uma característica das grandes obras.
Pese embora muitos sejam da opinião, inclusive o próprio
autor, de que os quatro livros desta tetralogia podem ser lidos por qualquer
ordem, como se cada livro fosse uma entrada diferente que leva à história
principal, eu sou da opinião de que as peças encaixam melhor se os livros forem
lidos pela ordem sequencial em que foram escritos, pese embora nem tudo seja
totalmente claro de um livro para o outro. O
Jogo do Anjo parece que destoa de A
Sombra do Vento no que respeita ao centro do enredo – porque razão tanto
destaque para David Martim? Em O
Labirinto dos Espíritos percebe-se o porquê. Também, O Prisioneiro do Céu, apesar de ser uma boa história, apenas em O Labirinto dos Espíritos ganha fulgor à
medida que Zafón nos permite ver tudo. Uma coisa para mim é certa: ler O Labirinto dos Espíritos sem ter lido
nenhum dos outros livros anteriores é perder o prazer de observar como o
escritor lança luz sobre uma série de pormenores e situações menos claros que
são levantados nos primeiros livros e que apenas no último ficam devidamente
claros para o leitor.
Para terminar, apenas uma nota sobre um pormenor delicioso,
pelo menos para mim: A Sombra do Vento,
O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu e O Labirinto
dos Espíritos, para além dos títulos de cada um dos livros desta tetralogia,
são também livros dentro do próprio enredo do Cemitério dos Livros Esquecidos.